sexta-feira, 6 de março de 2009

Sexo - da sacralização à repugnância

«Para nós, as partes genitais são já há longas gerações as pudenda, objectos de vergonha e, em caso de maior recalcamento sexual, mesmo de repugnância. Lancemos um olhar de conjunto à vida sexual do nosso tempo, em particular à das camadas sociais que são portadoras da civilização humana, e seremos tentados a dizer: é apenas a contragosto que os seres humanos de hoje, na sua maioria, se submetem às exigências da procriação e, ao fazê-lo, sentem-se ofendidos e rebaixados na sua dignidade humana. O que subsiste entre nós da outra concepção da vida sexual refugiou-se nas camadas populares baixas, que se mantiveram rudes, e dissimula-se nas camadas mais elevadas e requintadas, como culturalmente inferior, e não se manifesta por actos senão à custa das amargas censuras da má consciência. Tudo isto era bem diferente nos tempos primitivos do género humano. Dos dados trabalhosamente recolhidos pelos especialistas das civilizações podemos retirar a convicção de que as partes genitais eram originalmente o orgulho e a esperança dos seres humanos, eram objecto de veneração divina e transferiam a divindade das suas funções a todas as novas actividades a que o homem se dedicava. Da sua essência surgiram, por sublimação, inúmeras figuras de deuses e, na época em que a relação entre as religiões oficiais e a actividade sexual estava já oculta à consciência colectiva, certos cultos secretos esforçaram-se por mantê-lo vivo junto de um certo número de iniciados. Finalmente aconteceu que, no decurso do desenvolvimento da civilização, tantos elementos divinos e sagrados foram extraídos da sexualidade que o remanescente desta se tornou objecto de desprezo. Mas em virtude da indestrutibilidade inerente a todos os vestígios psíquicos, não devemos admirar-nos de que mesmo as formas mais primitivas de adoração dos órgãos genitais tenham persistido até épocas bem recentes e que linguagem, costumes e superstições da humanidade de hoje contenham sobrevivências de todas as fases deste processo de desenvolvimento.»
in Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, de Sigmund Freud