domingo, 24 de janeiro de 2010

O que diz Maquiavel (II)

Em vésperas do debate do Orçamento Geral do Estado, recorro de novo a um texto de O Príncipe de Maquiavel, o capítulo XVI, para reflexão, e que poderá fornecer pistas de como chegámos à situação actual do país e, por que não, também das famílias e dos cidadãos endividados.


Da liberalidade e da parcimónia
(De liberalitate et parcimonia)
«Para começar pelas qualidades que referi primeiro, digo que conviria ser tido por liberal. Contudo, ser liberal na medida necessária para disso ter fama é prejudicar-se a si mesmo, porque sendo-o com medida e como deve ser, não se será conhecido por tal nem se evitará a má fama do contrário. Assim, para conquistar entre os homens o nome de liberal, não se pode esquecer nenhuma espécie de magnificência, de tal sorte que um príncipe desta natureza consumirá em coisas semelhantes todos os seus bens e, no fim, se quiser conservar a fama de liberal, ver-se-á obrigado a sobrecarregar extraordinariamente o seu povo, a oprimi-lo com impostos, a fazer tudo quanto é possível para reunir dinheiro. Desse modo, começará a ser odiado pelos súbditos e a merecer pouca estima de todos, pois que empobrecerá. Como, com a sua liberalidade, molestou muitos e deu a poucos, tornar-se-á sensível à primeira desordem e tropeçará no primeiro obstáculo, e, se vir todo esse mal e quiser arrepiar caminho, ver-se-á, acto contínuo, apodado de somítico.
Portanto, não podendo usar da virtude da liberalidade em dose suficiente para que seja reconhecida sem o prejudicar, um príncipe prudente não se deve preocupar se lhe chamarem somítico, pois com o tempo será gradualmente considerado liberal, quando virem que, graças à sua economia, os seus rendimentos lhe chegam, se pode defender de quem o atacar e empreender cometimentos sem sobrecarregar o povo. Assim, usará de liberalidade para todos aqueles a quem não tira nada, e que são em número infinito, e de sovinice para com todos aqueles a quem nada dá, que são poucos. No nosso tempo, só vimos fazer grandes coisas aos que eram considerados somíticos; os outros foram vencidos. O papa Júlio II, depois de se servir da fama de liberal para conseguir o pontificado, não se preocupou muito em a conservar, a fim de ter meios para financiar a guerra. O actual rei de França sustentou várias guerras sem impostos extraordinários, pois pode cobrir as despesas supérfluas com as economias que fazia há muito. O actual rei de Espanha, se fosse considerado liberal, não se teria podido lançar em tantas aventuras nem coroá-las de êxito.
Logo, para não se ver na contingência de pilhar os seus súbditos, para ter meios de defesa para não se tornar pobre e mesquinho e para não se ver obrigado a roubar e a forçar, um príncipe deve importar-se pouco que lhe chamem somítico, pois esse é um dos vícios que lhe permitem reinar. E se alguém me disser que, mercê da sua liberalidade, Júlio César chegou a imperador e que vários outros, por terem sido liberais, de facto e na opinião alheia, conquistaram lugares muito elevados, responderei: ou és um príncipe já feito, ou vais a caminho de o ser. No primeiro caso, a liberalidade não vale nada; no segundo, é necessário seres considerado liberal. Ora, César foi um daqueles que queriam ascender ao principado de Roma. Mas se, depois de o conseguir, tivesse sobrevivido e não pusesse cobro às grandes despesas, teria destruído o império. Se me replicarem que muitos príncipes considerados liberais fizeram grandes coisas no capítulo da guerra, responderei que o príncipe gasta os seus bens e os dos seus súbditos, ou os doutrem. No primeiro caso, deve ser parcimonioso; no segundo, não deve esquecer nenhuma magnificência. Assim, um príncipe que comanda um exército e vive de pilhagens, de saques de cidades, de resgates e dos bens alheios, precisa muito de ser liberal, pois de contrário os soldados não o seguirão. Podes ser o mais generoso possível com aquilo que não te pertence nem aos teus súbditos, como fizeram Ciro, César e Alexandre, pois despender os bens alheios, além de não te tirar a boa fama, ainda ta acrescenta. Só despender o que é teu te prejudica, tanto mais que não há no mundo coisa que se consuma a si própria como a liberalidade: enquanto usas dela, perdes a possibilidade de a usar e tornas-te ou pobre e mesquinho ou, para escapar à pobreza, ganancioso e odiado. Ora, entre todas as coisas, um príncipe deve evitar, sobretudo, ser odiado e mesquinho, e a liberalidade conduz às duas condições. Portanto, é mais prudente suportar o apodo de somítico, que engendra má fama sem ódio, do que, por querer reputação de liberal, incorrer forçosamente na de ganancioso, que engendra má fama com ódio.»

4 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Muitíssimo oportuna, Josefa, esta leitura de Maquiavel. Vale bem a pena reflectir sobre estas palavras repletas de sabedoria...

Tomara que o Orçamento de Estado seja aprovado rapidamente, e que não constitua obstáculo ao equilíbrio de que o país necessita.
Eu sou a favor de alguma contenção orçamental, dadas as actuais circunstâncias, mas onde e de que modo fazê-la... aí, tenho que confiar nos especialistas.

Obrigada pela excelente leitura.

Beijinhos

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
Enfim! Os fins justificam os meios...
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Ana Paula, só respondo hoje ao seu comentário porque esperei pela apresentação do Orçamento na A.R., o que se verificou quase à meia-noite de ontem, e, para mim, é uma desilusão por falta de medidas sérias.
O Orçamento vai ser aprovado na generalidade, pois o PSD e o CDS-PP já se comprometeram com a sua abstenção. O que virá depois quando for debatido na especialidade é que é uma incógnita inquietante.
E, claro, o texto de Maquiavel, com a descrição das consequências de se tomar a atitude da liberalidade ou a da parcimónia com os gastos tanto do que é nosso como com o que é dos outros (impostos) também me pareceu adequado, embora me pareça de difícil compreensão para alguns, uma vez que não conseguem ver as metáforas para os nossos dias nas situações e alusões a factos daquela época.
Obrigada e beijinhos.

Maria Josefa Paias disse...

Miguel,
Creio que neste texto o que vemos é o fim trágico a que certos meios nos levam (e não ao contrário). A haver
justificação, só a ignorância ou a estupidez.
Obrigada e um abraço.