quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Rilke - Cartas a um jovem poeta (8.ª)


Quero falar consigo um pouco mais, caro Senhor Kappus, ainda que praticamente não tenha nada a dizer que o possa ajudar, que lhe possa ser útil. Viveu muitas e grandes tristezas que passaram. E que elas passassem, diz-me, também o magoou e deixou amargurado. Mas peço-lhe que reflicta: estas grandes tristezas não terão antes passado por si, por dentro de si? Não terão dado nova forma a muitas coisas em si, não terão mudado um qualquer aspecto do seu ser? Perigosas e daninhas são apenas aquelas tristezas que exibimos diante dos outros para que pareçam maiores do que são; como doenças levianamente tratadas apenas nos seus sintomas, entram em remissão por um breve lapso de tempo para depois regressarem tanto mais terrivelmente; e acumulam-se no interior e são vida… são vida não vivida, desdenhada, perdida, e quase nos matam. Se pudéssemos ver mais longe do que o nosso conhecimento alcança e olhássemos para além das ameias dos nossos pressentimentos, talvez suportássemos então as nossas tristezas com mais confiança do que as nossas alegrias. Pois as tristezas são momentos em que qualquer coisa nova e desconhecida entra dentro de nós; as nossas emoções emudecem, perturbadas e tímidas, tudo em nós se recolhe, instaura-se o silêncio, e o novo, que ninguém conhece, desloca-se para o seu centro e cala-se.
Penso que quase todas as nossas tristezas são momentos de tensão, e se sentimos que nos tolhem é apenas porque já não ouvimos a vida das nossas emoções que se tornaram estranhas. Porque estamos a sós com a estranheza que entrou dentro de nós; porque por um momento tudo o que nos é conhecido e familiar desapareceu; porque estamos em plena transição e não podemos parar. É por isso que também a tristeza passa: o que é novo em nós, o que nos foi acrescentado, entrou no coração, na sua câmara mais interior, mas também não está nele – está já no sangue. E não chegamos a saber o que era. Facilmente nos levariam a crer que nada acontecera, e no entanto mudámos, como muda uma casa quando entra um hóspede. Não sabemos dizer quem entrou, talvez nunca venhamos a saber, mas vários sinais indicam que foi o futuro que assim entrou, para se metamorfosear dentro de nós muito antes de acontecer. E por esta razão é tão importante estarmos sós e atentos quando nos sentimos tristes: porque o momento aparentemente inerte e sem eventos em que o nosso futuro entra em nós está muito mais perto da vida do que qualquer outro momento ruidoso e acidental em que ele acontece como se viesse de fora. Quanto mais silenciosos, pacientes e abertos formos enquanto pessoas tristes, tão mais profundo e límpido será o novo que entre em nós, tanto melhor o saberemos receber, tanto mais será ele o nosso destino, e quando um dia mais tarde ele “acontecer” (ou seja, quando sair de nós para se mostrar aos outros), tanto maior será a afinidade e proximidade íntima que nos unirá ao novo. É necessário – e aos poucos será esse o rumo da nossa evolução – que nunca nos deparemos com nada que nos seja estranho, mas apenas com o que desde há muito nos pertence. Vários conceitos de movimento foram já reformulados, e do mesmo modo reconheceremos gradualmente que o que chamamos destino parte dos homens, não entra neles vindo de fora. Se muitos não reconheceram o que tinha origem neles, foi apenas porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam nem o fizeram seu; era um destino para eles tão estranho que, no seu susto desnorteado, pensaram que só podia ter entrado neles agora e juravam que nunca tinham encontrado nada de semelhante dentro de si. Assim como por muito tempo nos enganámos acerca do movimento do Sol, também ainda nos enganamos sobre o movimento do que está por vir. O futuro é um eixo fixo, caro Senhor Kappus, mas nós deslocamo-nos no espaço infinito.
Como não havia de ser difícil?

E se falarmos outra vez da solidão, torna-se cada vez mais claro que ela no fundo não é nada que possamos escolher ou abandonar. Nós somos solitários. Podemos iludir-nos a esse respeito e agir como se assim não fosse. É tudo. Mas perceber que somos solitários é de longe melhor, perceber que é esse na verdade o nosso ponto de partida. É certo que nesse momento sentimos uma vertigem; pois todos os pontos em que os nossos olhos costumavam pousar desaparecem, já nada está perto, e tudo o que está longe está infinitamente longe. Quem saísse do seu quarto, quase sem transição nem treino, e se visse no cimo de uma enorme montanha, teria uma sensação semelhante: uma insegurança sem igual, um sentimento de ter sido abandonado ao inominável quase o aniquilariam. Julgaria que estava a cair ou a ser lançado no espaço ou a estilhaçar-se em mil pedaços: que monstruosa mentira teria o seu cérebro que inventar para conseguir recuperar e explicar o estado dos seus sentidos. É assim que, para aquele que se torna solitário, todas as distâncias e todas as proporções mudam; estas mudanças geram subitamente muitas outras e, como acontecia ao homem no cimo da montanha, nascem então percepções invulgares e sensações estranhas que parecem exceder o limite do suportável. Mas também elas têm por força de ser vividas. Temos de aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso, o mais inexplicável. Que os homens tenham sido cobardes a este respeito trouxe incontáveis danos à vida; as experiências a que se chama “aparições”, o “mundo dos espíritos”, a morte, todas estas coisas tão familiares foram expulsas da vida por uma resistência quotidiana, de tal forma que os sentidos com que as poderíamos apreender regrediram. Já para não falar de Deus. Mas o medo do inexplicável não empobreceu apenas a existência do indivíduo, cerceou também as relações entre uma pessoa e outra, como se as retirasse do leito do rio das possibilidades infinitas e as levasse para o terreno baldio das margens onde nada acontece. Pois não é apenas por inércia que as relações humanas são tão indizivelmente monótonas, repetindo-se de caso para caso sem renovação, é porque os homens receiam qualquer experiência nova e imprevisível que julguem ultrapassar as suas forças. Mas só quem está preparado para tudo, só quem nada exclui, nem mesmo o mais enigmático, viverá como uma coisa viva a relação com outra pessoa e irá ele próprio até ao limite da sua existência. Pois se concebermos a existência do indivíduo como um espaço maior ou mais pequeno, percebemos que muitos conhecem apenas um canto do seu espaço, um lugar à janela, uma passadeira por onde caminham para trás e para diante. E, no entanto, é tão mais humana aquela perigosa incerteza que força o preso na história de Poe [O fosso e o pêndulo] a tactear as formas do seu cárcere medonho e a não ignorar o indizível terror da sua reclusão. Mas nós não estamos presos. Não há armadilhas nem ciladas à nossa espera, nem há nada que nos deva fazer medo ou atormentar. Estamos dentro da vida como dentro do elemento a que mais correspondemos, e além disso tornámo-nos tão semelhantes à vida ao longo de milénios de adaptação que, graças a um feliz mimetismo, quando paramos por um momento quase não nos distinguimos do que nos rodeia. Não temos razão para desconfiar do nosso mundo, porque ele não está contra nós. Se o mundo tem sustos, são os nossos sustos, se tem abismos, são abismos que nos pertencem, se tem perigos, temos de tentar amá-los. E se guiarmos a nossa vida pelo princípio de nos atermos sempre ao difícil, veremos que o que agora ainda nos parece estranho se tornará familiar e leal. Como podíamos nós esquecer os velhos mitos que estão na origem de todos os povos; o mito do dragão que no último momento se transforma em princesa; os dragões da nossa vida são porventura todos eles princesas que apenas esperam ver-nos belos e valorosos por uma vez. No fundo, o que nos parece terrível talvez seja indefeso, talvez espere a nossa ajuda.
É por isso, caro Senhor Kappus, que não deve ter medo quando diante de si se levanta uma tristeza tão grande como nunca viu, quando o desassossego, como a luz e a sombra das nuvens, sobrevoa as suas mãos e todas as suas acções. Tem de pensar que dentro de si está a acontecer qualquer coisa, que a vida não o esqueceu e que o segura na sua mão; a vida não o deixará cair. Porque quer excluir da sua vida a inquietude, o sofrimento, a melancolia, se não sabe que a tarefa estes estados cumprem dentro de si? Porque se deixa perseguir pela pergunta: donde vem tudo isto e para onde quer ir? É porque no fundo sabe que está num momento de transição e não conhece desejo maior do que transformar-se. Se alguns dos seus processos estão doentes, lembre-se de que a doença é a maneira que o organismo tem para se libertar do que lhe é estranho; nesse caso, apenas podemos ajudá-lo a estar doente, a ter a doença até ao fim e a expulsá-la, pois é esta a sua evolução. Dentro de si, caro Senhor Kappus, acontecem tantas coisas; tem de ser paciente como um doente e confiado como um convalescente; porque agora talvez seja ambos. E mais ainda: você é também o médico e tem de se vigiar. Mas em todas as doenças há dias em que o médico nada pode fazer senão esperar. E é acima de tudo isso, enquanto seu médico, que agora terá de fazer.
Não se observe demasiado. Não tire conclusões apressadas acerca do que lhe está a acontecer; deixe que simplesmente aconteça. Caso contrário, facilmente começará a olhar com uma atitude reprovadora (ou seja, moralista) para o seu passado, que está naturalmente presente em tudo o que agora lhe acontece. Mas o que recorda e condena não são os erros, os desejos e a nostalgia dos seus tempos de rapaz que se prolongam ainda dentro de si. As circunstâncias extraordinárias de uma infância solitária e desamparada são tão difíceis, tão complicadas, dependem de tantas influências e são ao mesmo tempo tão desligadas das relações reais da vida que, se um vício entra nela, não pode ser apelidado sem mais de vício. Temos de ter muito cuidado com os nomes; é muitas vezes o nome de um crime que destrói uma vida, não a acção pessoal e sem nome, que talvez fosse uma necessidade plenamente determinada desta vida e pudesse ser por ela assumida sem esforço. E o dispêndio de forças parece-lhe ser tão grande apenas porque está a sobrestimar a sua vitória; esta vitória não é a “grandeza” que julga ter conquistado, ainda que este seu sentimento seja certeiro; a grandeza reside em ter sido capaz de substituir aquele engano por uma coisa real e verdadeira que já estava em si. Sem isto, a sua vitória teria sido apenas uma reacção moral sem importância, mas deste modo tornou-se uma parte da sua vida. Da sua vida, caro Senhor Kappus, em que penso sempre com os melhores desejos. Lembra-se como esta vida saiu da infância e começou a ansiar pela “grandeza”? Pois eu vejo como esta vida sai agora da “grandeza” e começa a ansiar por algo maior. É por isso que ela não deixa de ser difícil, mas por esta razão também não deixa de crescer.
E se permite que lhe diga mais qualquer coisa, acrescento o seguinte: Não julgue que aquele que agora tenta consolá-lo vive sem esforço por detrás de palavras simples e tranquilas que por vezes lhe trazem conforto. A vida deste homem conheceu muita fadiga e tristeza e ficou muito aquém delas. Mas, se assim não fosse, ele também não poderia encontrar as palavras necessárias.

O seu,
Rainer Maria Rilke

Borgeby gard, Flädie, Suécia, 12 de Agosto de 1904

1 comentário:

Hanaé Pais disse...

Nada é dificil, apenas quando nos recolhemos no silêncio.

O silêncio, pode ser para quem não pratica o bem o maior algoz o maior verdugo.

Eu convivo muito bem com o meu silêncio.

E vós?